O aborto é permitido no Brasil?

Cônego José Everaldo | Vigário Judicial do Tribunal Eclesiástico

Nos últimos dias, mais um caso penal vem provocando grande debate nas redes sociais. Trata-se da situação envolvendo uma menina de dez anos que teria sido estuprada pelo próprio tio, engravidando dele. Embora o episódio seja triste e reprovável, servirá como exemplo para que possamos estudar um interessante ponto do Direito comparado: É possível aceitar o chamado aborto sentimental ou o aborto humanitário.

O tema é bastante sensível. No presente texto, farei uma análise em conformidade com a doutrina oficial da Igreja, o código de direito canônico e do ponto de vista do direito penal do Brasil. Mas, desde já, respondemos a indagação NÃO É PERMITIDO.

  1. O que diz a doutrina da Igreja Católica

A doutrina da Igreja Católica sobre o aborto se encontra nos números 2270-2273 do Catecismo da Igreja Católica. A Igreja Católica afirma que a vida humana deve ser respeitada e protegida, de modo absoluto, a partir do momento da concepção. Desde o primeiro momento da sua existência, devem ser reconhecidos a todo o ser humano os direitos da pessoa, entre os quais o direito inviolável de todo o ser inocente à vida (cf. Congregação para a Doutrina da Fé, Instrução Donum vitae, 1, 1). Está escrito: “Antes de te formar no ventre materno, Eu te escolhi: antes que saísses do seio da tua mãe, Eu te consagrei” (Jr 1, 5). E também está escrito: “Vós conhecíeis já a minha alma e nada do meu ser Vos era oculto, quando secretamente era formado, modelado nas profundidades da terra” (Sl 139, 15).

A Igreja afirmou, desde o século I, a malícia moral de todo o aborto provocado. E esta doutrina não mudou. Continua invariável. O aborto direto, isto é, querido como fim ou como meio, é gravemente contrário à lei moral, pois está escrito na Didaqué, texto do 1º século e outros: “Não matarás o embrião por meio do aborto, nem farás que morra o recém-nascido” (Didaké 2, 2; cf. Epistola Pseudo Barnabae 19. 5; epistola a Diogneto 5, 6: Tertuliano, Apologeticum, 9, 8).

O concílio Vaticano II também declarou: “Deus […], Senhor da vida, confiou aos homens, para que estes desempenhassem dum modo digno dos mesmos homens, o nobre encargo de conservar a vida. Esta deve, pois, ser salvaguardada, com extrema solicitude, desde o primeiro momento da concepção; o aborto e o infanticídio são crimes abomináveis” (Gaudium et spes, 51).

A Igreja Católica afirma que o inalienável direito à vida, por parte de todo o indivíduo humano inocente, é um elemento constitutivo da sociedade civil e da sua legislação: «Os direitos inalienáveis da pessoa deverão ser reconhecidos e respeitados pela sociedade civil e pela autoridade política. Os direitos do homem não dependem nem dos indivíduos, nem dos pais, nem mesmo representam uma concessão da sociedade e do Estado. Pertencem à natureza humana e são inerentes à pessoa, em razão do ato criador que lhe deu origem.

“Entre estes direitos fundamentais deve aplicar-se o direito à vida e à integridade física de todo ser humano, desde a concepção até à morte” (Donum vitae, 3). “Desde o momento em que uma lei positiva priva determinada categoria de seres humanos da proteção que a legislação civil deve conceder-lhes, o Estado acaba por negar a igualdade de todos perante a lei. Quando o Estado não põe a sua força ao serviço dos direitos de todos os cidadãos, em particular dos mais fracos, encontram-se ameaçados os próprios fundamentos dum «Estado de direito» […]. Como consequência do respeito e da proteção que devem ser garantidos ao nascituro, desde o momento da sua concepção, a lei deve prever sanções penais apropriadas para toda a violação deliberada dos seus direitos” (Donum vitae, 3).

Na Encíclica Evangelium vitae, o Papa São João Paulo II afirmou esta doutrina com sua autoridade de Supremo Pastor da Igreja: “com a autoridade que Cristo conferiu a Pedro e aos seus Sucessores, em comunhão com os Bispos — que de várias e repetidas formas condenaram o aborto e que, na consulta referida anteriormente, apesar de dispersos pelo mundo, afirmaram unânime consenso sobre esta doutrina — declaro que o aborto direto, isto é, querido como fim ou como meio, constitui sempre uma desordem moral grave, enquanto morte deliberada de um ser humano inocente. Tal doutrina está fundada sobre a lei natural e sobre a Palavra de Deus escrita, é transmitida pela Tradição da Igreja e ensinada pelo Magistério ordinário e universal” (n. 62).

No que se refere ao aborto provocado em algumas situações difíceis e complexas, é válido o ensinamento claro e preciso do Papa São João Paulo II: “É verdade que, muitas vezes, a opção de abortar reveste para a mãe um carácter dramático e doloroso: a decisão de se desfazer do fruto concebido não é tomada por razões puramente egoístas ou de comodidade, mas porque se quereriam salvaguardar alguns bens importantes como a própria saúde ou um nível de vida digno para os outros membros da família. Às vezes, temem-se para o nascituro condições de existência tais que levam a pensar que seria melhor para ele não nascer. Mas estas e outras razões semelhantes, por mais graves e dramáticas que sejam, nunca podem justificar a supressão deliberada de um ser humano inocente” (Evangelium vitae, 58).

  1. Como outras Igrejas e Religiões interpretam

As Igrejas protestantes, em geral, mesmo considerando que o aborto fere o princípio do respeito à vida, são mais liberais que a Católica. A Igreja Anglicana, por exemplo, permite o aborto antes das 28 semanas. Os metodistas deixam à mulher a liberdade de abortar, “após uma profunda meditação”, ou seja, com responsabilidade. Entre os luteranos, existem duas correntes: a radical, que se identifica com a católica oficial; e a mais liberal, que permite o aborto sob certas condições.

Até mesmo o Corão, o livro sagrado dos muçulmanos, é mais liberal porque considera que o feto começa a ter alma só depois de 120 dias. De modo que o aborto seria permitido antes disso, como também em caso de risco à vida da mulher. Segundo o Corão, se a vida da mãe está em perigo, é preferível sacrificar a planta para salvar a raiz.

Para o judaísmo, nos tempos de Jesus o aborto não representava um problema, já que a maior condenação para uma mulher era ser estéril. Um filho era a maior bênção.

  1. O que diz o Direito Canônico

O Código de Direito Canônico, código da Igreja Católica, afirma “A colaboração formal num aborto constitui falta grave. A Igreja pune com a pena canônica da excomunhão este delito contra a vida humana. “Quem procurar o aborto, seguindo-se o efeito («effectu secuto») incorre em excomunhão latae sententiae (CIC cân. 1398), isto é, pelo fato mesmo de se cometer o delito” (CIC cân. 1314) e nas condições previstas pelo Direito (cf. CIC cân. 1323-1324). A Igreja não pretende, deste modo, restringir o campo da misericórdia. Simplesmente, manifesta a gravidade do crime cometido, o prejuízo irreparável causado ao inocente que foi morto, aos seus pais e a toda a sociedade”.

  1. O que diz o Direito Penal Brasileiro

A legislação Brasileira considera um crime o Aborto e pune quem o provoca (cf. art. 124-126).

O direito Penal brasileiro não pune (excludente de punibilidade) quem pratica o aborto, no caso de Estupro ou de Perigo para a vida da Gestante. O dispositivo está previsto no artigo 128, inciso II, do Código Penal Brasileiro, que diz o seguinte: “Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico: II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Assim, sempre que da prática de um estupro resultar uma gravidez para a vítima (mulher), a lei penal não autoriza a realização do aborto, mas exprime que não punirá o médico que fizer o aborto. Nesse caso, por se tratar de uma autorização legal, o médico não poderá sofrer nenhum tipo de punição.

Porque a legislação não pune o médido? Para a legislação penal, o crime de estupro pressupõe emprego de violência ou grave ameaça contra a vítima, que tem a sua dignidade sexual completamente violada, invadida, pelo agressor. Trata-se de delito que gera vários traumas, muitas vezes irreparáveis. Não seria nada razoável exigir que a mulher, em tais hipóteses, queira dar a vida a um ser humano concebido em razão de tamanho ato de brutalidade. Do contrário, sempre que essa mulher olhar para o filho, lembrará do momento em que foi violentada.

Para o professor Luiz Regis Prado, por exemplo, a mãe não pode abrir mão de um direito que não lhe pertence (a vida da criança/do feto). Logo, para o renomado autor, sendo o nascituro o verdadeiro titular do seu próprio direito à vida, caberia a ele (nascituro) consentir com a realização (ou não) do aborto. Como isso é impossível, não poderíamos afastar a responsabilização criminal do médico que viesse a praticar o aborto (Prado, Luiz Regis Tratado de Direito Penal: parte especial – arts. 121 a 249 do CP, volume 2 / Luiz Regis Prado. – 3. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 152. E-book).

Parece uma contradição o excludente de culpabilidade e mesmo a autorização judicial de um magistrado para a prática do Aborto, pois prescreve a Constituição Federal no art. 5º caput: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade DO DIREITO À VIDA, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.

A legislação brasileira reconhece o direito inviolável à vida do Nacituro, porque o poder judiciário julga que pode autorizar o Aborto de uma criança de seis meses no ventre materno? O direito penal não autoriza o juiz deferir por sentença o aborto, mas apenas afirma que o juiz não pode punir quem faz o aborto nessas circunstâncias.

Infelizmente, tornou-se uma praxe do judiciário deferir, por sentença, a ordem judicial aos médicos do sistema público de saúde de realizar o aborto. Prática nefasta, que agride os princípios invioláveis de nossa Constituição de 1988.

  1. Conclusão

Diante de opiniões tão discordantes na sociedade Brasileira, nas religiões e na forma de interpretar o direito, há sempre uma celeuma grande quando novo caso é evidenciado.

Porém, mesmo com toda a celeuma a Igreja permanece firme na doutrina sobre o tema e pede a Deus que nova consciência nasça na sociedade Brasileira.