Por: Clemerson Luís do Nascimento Silva / Psicologo
Em 1989 aconteceu a estreia da telenovela “Tieta”, de Aguinaldo Silva, e a música tema da personagem principal, a Tieta do Agreste, cantada por Fafá de Belém, dá sentido ao resgate da memória afetiva: “regressar é reunir dois lados: à dor do dia de partir com seus fios enredados na alegria de sentir”. Relembrar é tornar presente o que passou, trazer para o agora o que não será possível viver no futuro, pois o que sobra daquilo que se perde de/em si, do outro ou de algo é a saudade, uma forma de ficar.
O Natal é tradicionalmente um evento de partilha, um tempo cheio de reencontros entre familiares, amigos e colegas, podendo ser também a ocasião em que as ausências se tornam ainda mais presentes, aumentando a dor da perda. O vazio acaba preenchendo o espaço dos símbolos natalinos que normalmente ocupam o lugar central da data celebrada; a luminosidade dos risos e das gargalhadas que ocupavam a casa se apagam e dão lugar às lembranças regadas pelas lágrimas, nutridas de “e se…” e “porquês”.
É puramente natural que pessoas e famílias se sintam afetadas com as festas de conclusão de ano, e ao ouvirem a nostálgica canção “então é natal, e o que você fez?”, pensem ou falem: “sofri intensamente o meu luto”. Alguns aspectos conseguem interferir diretamente, em maior ou menor dificuldade, no processo de compreensão da perda, por exemplo, a idade, incluindo a de quem morreu; o ofício que a pessoa falecida ocupava na vida de cada membro do seio familiar e seu envolvimento afetivo.
O médico psiquiatra e pesquisador britânico Colin Parkes, inicia a Introdução de sua obra Amor e Perda: as raízes do luto e suas complicações, publicada no Brasil em 2009, falando que “para a maioria das pessoas, o amor é a fonte de prazer mais profunda na vida, ao passo que a perda daqueles que amamos é a mais profunda fonte de dor. Portanto, amor e perda são duas faces da mesma moeda. Não podemos ter um sem nos arriscar ao outro”. O amor tem muitos componentes e o mais imperativo é o compromisso: vínculo psicológico que conecta uma pessoa a outra por um longo tempo, visto que quando uma conexão é estabelecida, difícil será rompê-la. Essa emoção, afirma Parkes, assemelha-se “a um elástico, mais do que a qualquer forma de fio, ou seja, torna-se mais forte quanto mais os que se amam estiverem distantes”. Dessa forma, sentimos mais a partida do que a chegada.
Contudo, o luto por morte é apenas um dos muitos que enfrentamos de tempos em tempos na vida, trata-se de um processo interligado ao funcionamento psíquico que pode acontecer com o propósito de amenizar o sofrimento concebido pela ausência de alguém ou de algo; é a consequência de inúmeras perdas significativas, incluindo: a morte de uma pessoa amada; o fim de uma amizade; o término de um relacionamento; a notícia de uma doença crônica ou terminal; a perda do emprego, dos planos de carreira, dos estudos, da renda, de um objeto ou local, das funções fisiológicas e mentais; a morte de um animal de estimação etc.
Mas, diante da morte presente, quem realmente perde?
Pensando com o autor Fabrício Carpinejar, aprendi que eu e tantas pessoas morrem na pessoa que realmente morre, por isso a dor não passa, pois, diferente da tristeza que visita, a dor se hospeda. Frente à perda de uma pessoa amada, Carpinejar reflete que aquela pessoa não morreu, ela continua com cada um dos viventes nas histórias e nas lembranças, mas sou eu quem morro para ela. Nesse caso, eu não tenho saudade do outro, mas tenho saudade do que eu nunca mais serei para o outo; eu não penso no abraço ou no beijo que não poderei dar, mas penso no abraço e no beijo que nunca mais poderei receber; eu não penso que não vou mais poder ligar ou visitar a pessoa, mas angustia a realidade irreparável de que nunca mais receberei a ligação e a visita dela. A morte do outro é a nossa inexistência. Ela nos desconstrói porque pela primeira vez deixamos de existir para alguém, mas quem perdeu a vida continua mais viva do que nunca em nós.
O luto é paradoxal: nasce da perda gestada na coexistência e, simultaneamente, pare-nos para o desconhecido. Dele, são comuns os sentimentos de espanto, de raiva, de tristeza, de negação, de culpa, de solidão; o aparecimento de sintomas de ansiedade, de pânico, de melancolia, de apatia, desinteresse e de desamparo. Suscitando comportamentos como dificuldade de atenção e concentração – pensamento constante à perda e como será a sua vida – falta de apetite, de humor e de vitalidade – todos os sentimentos são oscilantes, “nivelados” a 8 ou 80.
A chegada das festas de fim de ano reafirma a separação: “ah, se você estivesse aqui…”. Para muitos a data (no momento) é felicidade garantida, para outros é dor que lateja, é ferida tocada, machuca, e sangrando de novo. A vontade de não viver esses dias é grande porque é complexo suportar a ausência, sem se queixar de “como fazer”. Permitir que o movimento aconteça nas possibilidades as quais se permite viver, sem exigência de certo ou errado, bom ou ruim, torna-se essencial; não existe padrão. A situação dolorosa pode levar à evolução e entrar em contato com a dor pode aumentar a força, prover recursos para lidar pouco a pouco com ela, dando a sensação de que o que antes reprimia agora está diminuindo, quando, em grande escala, o seu ser está crescendo em torno da dor, adaptando-se à realidade.
Quando esse processo natural se torna mais difícil que o habitual, existe um problema. Embora não haja tempo determinado para o luto, por isso é chamado processo, quando o ser não cresce em volta da dor, mas a dor aumenta de tamanho, prestes a causar desequilíbrio ou desenvolver transtorno à pessoa enlutada, eis o momento de procurar apoio psicológico, encontrar ajuda para compreender melhor o que está sentindo. Na experiência psicoterápica, a pessoa pode encontrar um lugar seguro para a sua dor e descobrir significados continuados para a sua vida.
A bem da verdade, o Natal e as festas de Fim de Ano serão diferentes ano após ano. Hoje quem sofre a perda, numa mesma data futura, com a sua partida, poderá ser causa de luto também, assim como que está vivendo agora a ausência de alguém. Portanto, importa construir sentidos e significados novos para essas datas, procurando formas de ressignificar a existência para viver esses e outros momentos, onde a ausência doída possa ser integrada em si e à presença de quem caminha à vida contigo.
Clemerson Luís do Nascimento Silva
Psicólogo Clínico – CRP 15/5744
Pesquisador na área de Psicologia e Morte
Técnico do CRAS de Porto de Pedras – AL
silva.clemersonluis@gmail.com